10 de maio de 2010

Ed.

Essa coisa de se dar bem tinha se tornado insuportável. Sentíamos a opressão: todos falando da nossa sintonia e perfeição. Era terrível. Todos os elogios eram para nós: o casal mais perfeito do oeste.
Eu gostava no início. Ela também. A gente ria e dizia cheio de cumplicidade perfeita: - eles nem imaginam...
Depois deu merda. Um berrava pro outro: - a gente se dá bem, não dá? - A gente junto é perfeito, não é? - Temos sintonia, não temos?
Éramos fracos. O mundo nos oprimia e a gente cedia. Fracos e perfeitos. Sintonia total e tédio.
Fazíamos demonstrações públicas de afeto: beijos longos no meio dos amigos, amassos juvenis e tesudos. A plateia repetia: - eles se amam tanto...
Depois que separamos o terceiro casal amigo nos demos por satisfeitos. A gente tinha descoberto uma coisa. E a coisa descoberta era fria e calculista. A gente gostava, a gente manipulava o mundo. Éramos fortes e dizíamos um pro outro: - eles nem imaginam...
Em casa nada de nada. Nenhum papo e nenhuma mão dada. Quartos separados e banheiros distantes. A intimidade vulgariza a relação, aconselhávamos os casais pagantes.
Começamos a ganhar dinheiro juntos. Era palestra, workshop e os cambau. A gente era bom em provocar o choro alheio. Tínhamos técnica e estudávamos. Até espírita a gente era. Várias fundações.
Quando ela engravidou a primeira vez a gente resolveu matar o anjinho. Vai atrapalhar a nossa evolução, pensamos. E radicalizamos: - nada de penetração. Sexo oral e manual dá conta, né môr?
A gente se punhetava/siriricava e se sentia bem. Ótimo até. Palestras e convites imbatíveis. Separar o banheiro era a glória pros nossos alunos. - como nunca pensamos nisso?, perguntavam os casais cheios de esperança.
Na nossa turnê pelo Nordeste é que aconteceu. Senti dor, tombei e veio o diagnóstico:
- câncer fatal, 2 meses no máximo.
- Temos dinheiro.
- Não adianta dinheiro.
- Mas...
- Nada de mas...é atípico...lamento.
Antecipamos o lançamento do livro. Sucesso total. Fizemos um capítulo em homenagem ao meu câncer e morte. As pessoas liam e choravam. Mais palestras pintaram.
Finalmente nos amávamos. Até às práticas de penetração voltamos: primeiro sexo anal, depois vaginal. Evoluíamos à olhos vistos.
Quando eu morri foi chato. Mas o livro foi relançado e ela estava mais linda do que nunca. Usava só preto e fazia palestras também para aconselhar viúvas. Como espírita às vezes conversava comigo. Até psicografava as coisas que eu dizia. Era ainda melhor do que antes.
Eu parei de me manifestar pra ela depois que ela deu meu nome pro seu primeiro filho. Achei deselegante e de mau gosto. E ela mentiu no livro novo que ela lançou. Disse que eu tinha reencarnado no menino. Foi demais pra mim. Partiu meu coração.
Eu decidi que eu queria vingança. Isso mesmo: vin-gan-ça. Eu ia assombrar ela, seu marido e o moleque com o meu nome.
Ah...eu me vingaria.
(...)