2 de setembro de 2008

copia e cola - pág. 23 e 24


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Foi nos bares que aprendi a viver. Não sei qual a vantagem disso, mas foi vendo essa gente que entendi meio mundo. Os rostos amarelos, os sorrisos bestiais, os ombros caídos e os pés suspensos. Nos primeiros bares logo aprendi que só interessa quem senta no balcão.
Lembro da preta que cantava uma música da Alcione enquanto fazia gestos e caras e bocas. Acho que foi com ela a minha primeira vez de
clareza-do-mundo-dentro-dum-bar.
Era uma preta de bunda boa e todo resto decadente: dentes grandes, peitos caídos, olhos mortos e nenhum resquício de alma. E ela dançava insistentemente, cada vez mais fraca e mais triste. Balançava a bunda boa pra lá e pra cá e balbuciava as músicas em inglês. Um inglês sem sentido que ganhava algum brilho quando ela tentava acompanhar. Um tipo de mistério.
Então veio a música da Alcione. Era uma música ruim e apelativa. Falava da mulher como loba e outras merdas do tipo. O velho discurso feminista de quem trepa mal. A música começou e os olhos da preta brilharam, uma alma tímida apareceu ali, um tipo de milagre que só eu percebi. O bar nunca mais foi o mesmo.
Ela começou a cantar com uma voz de preta, grave e séria e com alguma afinação. Ela virava o copo nos intervalos da letra e cantava olhando pra todos que estavam ali. Cantava séria e profunda, como se aquela merda de música fosse realmente algo. O sentido de tudo apareceu claro pra mim: o mundo era aquela preta cantando aquela música ruim como se essa fosse a única saída possível.
Ninguém reparava nela além de mim e isso também pareceu ser um sentido do mundo. Ela cantava e balançava a bunda boa como louca. Todos no balcão a olhavam com desinteresse e tédio. Era isso o milagre, era essa a compreensão. Aquela mulher cantava sozinha e não precisava de ninguém, ela era o único ser livre do planeta.
Quando ela notou que eu a olhava, ela se retraiu e começou a cantar baixinho e a balançar menos a bela bunda. Eu sorri pra ela e repeti o refrão da música que já tinha decorado. Ela sorriu pra mim com seus dentes enormes e voltou a balançar sua bunda com ainda mais vigor. Era esse o milagre. Eu tinha entendido o mundo. Meu caga-regra era uma lâmina pomposa e que brilhava na luz fria do bar:
o ser humano precisa de 1 grama de migalha pra 99 de desgraças, a felicidade é se alimentar apenas de 1 grama.
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Depois dessa preta o mundo mudou é claro. Os bares também. Nem sempre eles causam esse impacto.
Eu ainda era um freqüentador amador de bar quando vi essa cena. Ainda não entendia que ali, no mesmo lugar em que surge uma preta milagrosa, também havia vermes que queriam apenas seu sangue. Vermes tristes e honestos, pros quais migalhas é sempre um pedaço da sua carne. Acontece em qualquer boa família, afinal.
Um primo ambicioso e mau caráter é algo comum e vulgar, afinal de novo.
Depois dessa preta louca freqüentei, e ainda freqüento bares sempre esperando um novo milagre. Eles acontecem às vezes, mas apenas às vezes. Dependem do meu nível alcoólico e da minha necessidade de vê-los.
É uma idiotice que sempre se repete por aí: as coisas estão nos olhos de quem vê. Têm umas idiotices que fazem sentido.
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